domingo, 10 de janeiro de 2016

A doçura de resistir

Era só uma foto compartilhada numa rede social.
Um caminhão de lixo estacionado ao lado de um meio-fio e três garis, com seus inconfundíveis macacões verde-escuros (da mesma cor do letreiro do caminhão do qual deveriam não se diferenciar). Mas, ao contrário do que nossa repetitiva vida teima em naturalizar, lá estavam eles, de pernas para o ar, em três balanços infantis dispostos em linha numa praça qualquer.

Sim. Eles provavelmente estão matando o serviço, cometendo uma série de transgressões trabalhistas e deixando o seu lixo doméstico mais tempo na porta, juntando moscas, baratas e formigas. De pernas pro ar, os três trabalhadores são agora três meninos sorridentes a se balançar. Compartilham daquele balanço e do vento no rosto com a cumplicidade com que os meninos confiam nos meninos (Thiago de Mello já dizia disso em um verso errante).

E ao contrário de uma vida inteira (onde a tônica é um "não" silencioso ao que a mão teima em querer alcançar), apenas que por um instante, são senhores do seu tempo e se elevam aos céus para um simples gesto de sobriedade. Um assenhoreamento daquilo que o uso do macacão verde por primeiro lhes retira: o domínio sobre seu tempo de vida, seja dentro daquelas roupas sujas que os misturam ao lixo que recolhem, seja fora do cheiro do chorume, o qual impregna suas casas e os persegue durante o resto do dia. Nesse despojamento do tempo, muitas vezes, vão-se também o sentido que poderiam atribuir à vida. Atrás do caminhão de lixo ou ao colocar o seu próprio lixo na rua.

Contudo, o balanço dos garis vai além do seu movimento. Ele ataca a ordem com indisciplina, ataca o que o inafastável controle prescreve para o seu inacabável tempo de trabalho. Estar fora de hora e fora de lugar faz com que aqueles garis existam na paisagem a ponto de merecer uma foto de um terceiro qualquer numa sacada alta de um prédio vizinho. É nesse pequeno ato de resistência ao trabalho, esse gesto de tomar do empregador alguns parcos minutos que ele havia contratado mediante o compromisso de pagamento do salário, que os garis subvertem a distribuição de poderes dentro de uma relação (em regra precarizada) de emprego. E é justamente essa subversão que faz com que os garis se materializem diante de nossos olhos, desfilando beleza, colhendo empatia, questionando o óbvio (porque não se balançar nessa tarde de sol?).

Dispostos numa calçada, varrendo as ruas cabisbaixos, estariam fundidos à paisagem, tornando clara a normalidade inumana de seu dia a dia. Seria uma foto de uma praça vazia com três macacões verdes sem rosto a empunhar vassouras para nos livrar ("graças a Deus") do lixo nosso de cada dia, na invisibilidade indispensável do seu trabalho.

Foi a insurgência que trouxe nossos garis para a cena. Eles resistem. Eles existem. Eles são a pulsação viva de que onde houver exploração do trabalho haverá também o suspiro de sua resistência. Doce, diminuta, levitando no ar. A roubar do empregador uns poucos minutos da sua energia comprada por tão pouco. A roubar da sociedade um pouco do seu direito de ser indiferente à indispensabilidade daquele trabalho, às vidas por trás daqueles macacões é às dores de quem se subemprega. Mas o movimento da resistência, lento e doce, sugere que mesmo nas mais rígidas estruturas há lugar para se movimentar.

Se não ganhando mundo num impulso forte (e sabendo que depois dele certamente sentiremos um repuxo no sentido de oscilar novamente), apenas num balanço leve, faceiro e risonho, que permite plantar uma gargalhada cúmplice entre três colegas e assentar na pequena liberdade daquela tarde, o horizonte de se poder resistir ainda mais.

A resistência inspira solidariedade, para quem se balança.
E também para quem apenas observa.

(Renata Queiroz Dutra e Valdemiro Xavier dos Santos Jr.) 

3 comentários:

  1. Muito interessante o texto e a imagem, realmente há um grande conflito, por um lado estão se dando um intervalo, mas é um trabalho tão desgastante e pouco valorizado que não sei se poderia culpa-los ou repreende-los devido a um momento tão raro e breve em suas vidas.

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  2. A imagem é marcante, e quando você lê o texto a sensação de que o que eles estão fazendo no horário de trabalho fosse uma coisa horrível, pois estão infrigindo as leis para usufuir de algo que naquele momento não era permitido, mas então percebemos que são apenas três seres humanos (trabalhadores). E que essa atitude não os diminui como o seu trabalho, ao contrário nos traz uma bela e reflexiva imagem.

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