* Artigo publicado na revista Valor Econômico em 6 de setembro de 2016
Ricardo José Macedo de Britto Pereira | Valor Econômico
Ultimamente, muito se tem falado em
reforma trabalhista, sem se esclarecer realmente o que se pretende.
Comenta-se em atualizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
liberar a terceirização e estabelecer a prevalência do negociado sobre o
legislado.
O debate sobre a reforma do direito do
trabalho brasileiro exige revelar o que está por trás dessas propostas,
para que as ideias possam ser colocadas, refletidas e contrapostas. A
intenção de aprovar medidas a qualquer custo, sob o rótulo de modernas e
inevitáveis, para desqualificar e vencer possíveis alternativas ou
resistências, representa postura autoritária e retrocesso inadmissível.
Mas o que exatamente almeja o discurso da
modernização da CLT? A rigor, modernizar poderia ser entendido como
preencher lacunas legislativas em relação a condutas levadas com alguma
frequência ao Judiciário. O exemplo que pode ser citado é o assédio
moral. Apesar da omissão legislativa visando à sua repressão, muitas
práticas da espécie são julgadas pelos órgãos do Judiciário trabalhista.
Em momentos de crise, a flexibilização de direitos só favorece a expansão do capitalismo predatório
Outro exemplo de modernização da CLT
poderia ser a alteração da base de cálculo do adicional de insalubridade
sobre o salário mínimo. Na verdade, isso já foi providenciado pela
Constituição de 1988 ao prever o adicional sobre a remuneração. Contudo,
assim não entendeu o Supremo Tribunal Federal (STF), vislumbrando, na
hipótese, omissão legislativa.
Além desses, pode-se pensar nas inúmeras
pendências legislativas que impedem a concretização de preceitos
constitucionais instituidores de novos direitos para os trabalhadores.
Carecem de regulamentação, entre outros, a proteção contra a despedida
arbitrária ou sem justa causa, o adicional para atividades penosas e a
representação dos trabalhadores nas empresas de mais de duzentos
empregados, só para mencionar alguns itens de extensa lista. Não
obstante, a propagandeada “modernização da CLT” não parece cogitar de
providências nesse sentido.
Se o objetivo é ampliar a negociação
coletiva, a condição para tanto é a democratização das relações de
trabalho no âmbito das empresas e das categorias. Para que as
negociações possam se desenvolver em bases confiáveis, de acordo com os
princípios da lealdade e boa-fé, é necessário facilitar informações e
documentos sobre a realidade da empresa. Ademais, uma negociação efetiva
pressupõe maior participação dos trabalhadores, inclusive em decisões
que digam respeito aos rumos do empreendimento.
Acima de tudo, é fundamental a existência
de representantes dos trabalhadores com garantia de emprego para agir
em nome dos empregados das empresas e das categorias. Será que há
disposição para se estabelecer um diálogo permanente a fim de valorizar a
negociação coletiva? Ou apenas se buscam atalhos para suprimir
direitos?
Um dos eixos da “reforma trabalhista”
consiste em duas reivindicações inconciliáveis: terceirização e
negociação coletiva. A terceirização compromete a organização dos
trabalhadores e o seu poder de barganha. Ou seja, não há base para uma
autêntica negociação coletiva. Além disso, os empregadores formais não
possuem margem para definir as condições de trabalho dos empregados,
considerando que elas são pré-determinadas, na maior parte dos casos,
pelos tomadores de serviços.
Em momentos de crise, a flexibilização de
direitos, nessas circunstâncias, só favorece a expansão do capitalismo
predatório, em que os grandes engolem os pequenos. Seja num contexto de
crise real ou forjada, os direitos representam garantias importantes
contra as tendências devastadoras que, rapidamente, destroem o que foi
conquistado ao longo de muito tempo.
Os ataques às estruturas consolidadas
abrem espaço para poderes “aleatórios e contingentes operados por forças
dispersas e à deriva, soltas, sempre fora de controle e muitas vezes
furiosas”, na linha e com as palavras de Zygmunt Bauman.
O modelo do trabalho socialmente
protegido deve resistir às investidas ultraliberais que, numa completa
inversão dos valores constitucionais, difundem que os trabalhadores
produzem mais quanto maiores são as suas dificuldades econômicas e a
exposição aos riscos de toda natureza, como alerta Alain Supiot.
A liberalização das barreiras, mediante
eliminação ou flexibilização dos direitos, provoca danos irreversíveis.
Um deles, segundo Supiot, é deslocar a concorrência dos produtos para a
concorrência dos ordenamentos jurídicos. Ou seja, a rentabilidade das
empresas, nesta lógica, não decorre da qualidade dos produtos, mas do
espaço que alguns ordenamentos jurídicos conferem para explorar mais e
se responsabilizar menos pelos estragos das ações.
Submeter o nosso direito do trabalho à
dinâmica do mercado total, tornando-o atrativo para práticas degradantes
e precárias, atenta contra toda a sociedade brasileira e bloqueia, de
uma vez por todas, o tortuoso itinerário para assegurar trabalho digno e
decente aos brasileiros.
As reformas sociais anunciadas produzem
enorme impacto na vida das pessoas. Não há por que promovê-las confiando
na instabilidade das instituições, e a toque de caixa, sem observância
rigorosa dos princípios democráticos.
Ricardo José Macedo de Britto Pereira é
subprocurador-geral do Ministério Público do Trabalho, doutor em direito
do trabalho pela Universidade Complutense de Madri e professor titular
do Mestrado em Relações Sociais e Trabalhistas do UDF.
Nenhum comentário:
Postar um comentário